Neste artigo escrevo sobre a forma de trabalhar no escritório de arquitetura SPBR sob meu ponto de vista, da experiência como estagiário desde meados de 2016. Não trato sobre o produto final, a arquitetura, mas sobre o modo de trabalho em que ela é produzida. Mais como uma foto, que procura enquadrar e retratar o que está, e menos como uma pintura que reflete a cada pincelada.
O SPBR vem gradualmente aumentando a escala de sua produção desde 2003. Nos 15 anos de atuação do escritório de arquitetura dirigido por Angelo Bucci, a produção que inicialmente consistia em casas e construções de poucos metros quadrados passou gradualmente a abarcar também projetos de milhares de metros quadrados. Os concursos para o IMPA (2015) e para o IMS (2013), o hospital em São Bernardo (2014), a Arena Cultural do Hospital do Câncer em Barretos (2014) e o edifício de apartamentos em Lugano (2008) são exemplos desse movimento. Mesmo assim o escritório ainda é "pequeno", apenas 6 arquitetos contando com próprio Ângelo mais estagiários, de dois a quatro, (eu por exemplo). Como o escritório esta conseguindo aumentar a complexidade e a metragem de seus projetos sem perder a qualidade e sem precisar expandir o número de arquitetos? Acredito que uma das razões da manutenção da qualidade final está no modo de trabalho específico do escritório, no dia a dia de trabalho.
Projetar com calma
Diferentemente do que é praticado hoje em dia nas grandes empresas de design e arquitetura mundialmente famosas, como na liga dos star-architects, no SPBR o ritmo é essencialmente lento. Não se testa milhares de modelos volumétricos como no BIG ou no OMA. Não quero dizer que a produção é devagar, no sentido de demora, mas lento no sentido de tempo de consideração. Afinal o escritório entrou no seu período de maior produção há dois anos. O projeto sempre parte do desenho, e o desenho é resistente à mudança. Papel, lápis e escalímetro são as ferramentas do traço inicial de cada projeto e de cada detalhe. É muito comum no dia a dia do escritório voltar a essas ferramentas quando surge algum entrave, ou algo que precise mudar.
Vejo que antes de cada traço há, digamos assim, um período de meditação. Considera-se a questão mentalmente. Por vezes o lápis pousa sobre o papel sem traçar. Não estou aqui romantizando o processo, mas cada atitude no desenho é respaldada por certo raciocínio, explícito ou não, verbalizado ou não. Dessa maneira, acredito, cada traço contém em sua natureza a possibilidade de uma decisão acertada à priori. Digo possibilidade pois nunca o primeiro traço é o que fica, mas nele se aponta as questões latentes daquele momento específico do projeto. Como Victor Próspero me disse uma vez, trata-se do desenho apoiado sobre um certo "sentido no modo de fazer e no modo de habitar o espaço".
Programas BIM estão no mercado já há quase duas décadas, mas as pessoas projetam e constroem casas há milênios. Assim o croqui, a manifestação mais simples das intenções de um projeto, dificilmente é passível de erro. Mas é claro, também há uma preocupação constante com a sistematização correta das informações de desenho nos programas que sim, são utilizados no SPBR como em qualquer escritório.
A medida das coisas
Uma das lições que aprendi é não sair desenhando na primeira oportunidade que surge. Não inventar por inventar. Não chutar. Um edifício é o resultado de uma construção. E a construção é expressão de uma cultura construtiva. Essa cultura construtiva muda junto com o endereço. Projetar uma casa na Serra da Canastra é muito diferente de projetar um edifício na Av. Rebouças e ainda mais diferente se em uma cidade na Suíça. Cada local possuí materiais, forma de trabalho, códigos de obra e necessidades de conforto diferentes. Assim mesmo um desenho aparentemente simples, como a bancada de uma cozinha, precisa considerar antes um complexo de restrições. Com restrições quero dizer por exemplo a espessura das pedras normalmente oferecida pelas marmorarias, o tipo de acabamento disponível, a qualidade da instalação, o que vai ficar sobre ela etc. O desenho é feito sempre depois dessa consideração, nunca antes.
Além disso as coisas tem medidas, e essas medidas são intimamente ligadas ao custo da construção. Se uma pedra de mármore de 2cm custa X, uma de 3cm pode chegar a custa 5x só porque não é uma medida usual. A casa de Ubatuba, por exemplo, foi projetada inicialmente com vigas de aço, mas somado ao preço do aluguel do guindaste para aquele endereço a estrutura em concreto armado foi a mais em conta. Não é, portanto, uma questão matemática, é na verdade uma questão da prática da construção.
Além disso as medidas não necessariamente são da fita métrica. Há o tempo, a distância, o volume, a resistência mecânica, a cor, a temperatura. Todas essas manifestações enquanto construção estão, por assim dizer, inseridas num mundo próprio. No sentido que possuem regras e códigos próprios de funcionamento de acordo com sua natureza material.
Percebo que no SPBR em cada decisão consideramos essa totalidade, não há prioridade pelo o resultado final, a linda foto de arquitetura não é o objetivo.
O desenho é um documento
Tudo deve estar no desenho. A informação deve ser precisa e não deve haver informação redundante. Lembro que escutei o Ângelo falar um dia: “uma informação que não é necessária, ela só serve pra dar confusão”. Então por mais que um projeto já tenha começado a avançar em algum ponto essa informação só entra no desenho quando ela estiver precisamente localizada aonde deve estar. Ou seja, informação não aparece em todas as folhas. Se num desenho se trata da planta geral, dificilmente haverá informação referente à cozinha, para isso deve haver um outro desenho, que seja só da cozinha, por exemplo. Isso pode parecer óbvio para quem já trabalha no campo há um tempo, mas é algo constantemente lembrado. Como uma ação retroativa, de revisão constante. Não deixar nada “sobrando” no desenho.
Há o formato certo para cada informação, seja textual ou gráfica. E sua comunicação deve levar em conta a todos os agentes da construção. Tanto o construtor, quanto os consultores dos projetos complementares (estrutura, hidráulica, elétrica, luminotécnica, paisagismo, ar-condicionado, elevadores, etc) todos devem ser capazes de ler o desenho sem gerar dúvidas.
O cuidado com o desenho também serve para reduzir a quantidade de coisas deixadas em aberto. Ou seja, o mínimo de soluções deixadas para a obra. Isso ajuda na precisão do orçamento, o que reflete em maior controle do cliente para com seus gastos. Não se trata de nenhum preciosismo. Construção significa gasto constante, para isso é importante e melhor que se gaste mais tempo projetando e menos tempo construindo.
O projeto é um diálogo
Uma vez Tatiana Ozzetti definiu o trabalho do escritório como: “processo do projeto baseado na troca de conhecimento”.
O projeto começa no dia que as primeiras palavras são trocadas. Por telefone ou sentados à uma mesa, a conversa media o desenho. Projeto e conversa estão em consonância como numa ligação estranha de linguagens de dimensões diferentes, desenho e palavras.
No SPBR cada tema geralmente é chamado de assunto. Assunto pode significar desde a contratação do restaurador de caixilhos até a resolução final do layout do banheiro. É comum chegar pela manhã e numa conversa sentados à mesa de reunião dizer: "tal assunto precisa ser resolvido", ou "já está na hora de começarmos a tratar daquele assunto".
Assuntos, personagens
Do mesmo jeito percebo que todos os agentes da construção são de certo modo personagens de um enredo que se desenrola ao longos dos meses. Como nos livros, há o momento certo para cada personagem exercer seu papel na história que é construir um edifício. Mas se as etapas de construção são mais ou menos sempre parecidas, cada qual é singular na sua trama. A primeira cena é sempre a conversa com o arquiteto e alguém que o convoca (pessoa, instituição ou empresa), depois há a trilha a se percorrer. Geralmente o próximo personagem a aparecer é o engenheiro estrutural, que valida ou não a primeira hipótese, o plano. Ele também acompanhará o trajeto até o final, vingando ou não. Com o mapa traçado procurasse seguí-lo, mas não obrigatoriamente isso acontece. Há outros personagens que aparecem na jornada no momento necessário, podem ser os fornecedores ou os consultores. Há aqueles que são parceiros e te ajudam, e há aqueles que oferecem certas barreiras, como uma charada da esfinge que precisa ser resolvida. Podem oferecer armadilhas ou serem cúmplices honestos. Uma aprovação na prefeitura pode ser um grande vilão a ser derrotado. Como nos livros, cada história encontrará seu desfecho.
Um concurso se aproxima mais de um conto ou ensaio que guarda a semente de um romance ou uma tese. Lembra do conto da "Baleia" que depois deu origem Vidas Secas? Enquanto projetos mais livres como o novo MAM (ver aqui) está mais próximo de uma poesia que em poucas palavras abarca um estado de ânimo lírico e não precisa necessariamente lidar com um desfecho, mas que contém uma promessa. Uma obra construída está mais próxima de um romance de fôlego, daqueles que não se atravessa facilmente. Para terminá-lo é preciso estar consciente de que pode aparecer qualquer tipo de reviravolta, e que as questões essenciais não serão resolvidas num único dia.
Fazer direito
O valor cobrado pelos projetos não é inflado pela fama do escritório, é cobrado a valor da tabela do CAU. É algo que as pessoas se surpreendem quando descobrem pois afinal, escritórios tão premiados como este costumam cobrar um valor acima do mercado.
Acho que essa atitude no fundo reflete uma atitude na profissão como um todo. Não há inflação ou deflação desligada do estabelecido pela sociedade, assim como não há acochambro, ou mal feito no projeto. Fazer as coisas direito me parece também que demonstra uma certa posição ética frente ao trabalho e à profissão. Não estou defendendo que todos os escritórios deveriam fazer assim, sabe-se muito bem o cenário de desvalorização pelo qual a profissão passa hoje no Brasil. Mas buscar uma saída como a prática do RT (reserva técnica) acredito que mina ainda mais a situação.
Dessa forma se consegue definir melhor o papel do projeto de arquitetura dentro da complexidade que é a construção e nos processos econômicos em que acontece. Não havendo mistura da posição que cada profissional exerce no processo. Isso nos leva também ao próximo assunto.
De casas para edifícios
Lembro de uma conversa que tive uma manhã com o proprietário da casa em Sta. Teresa. Me contou sobre o primeiro dia que conversou com o Ângelo por telefone. Estava preocupado na época que o futuro arquiteto ou arquiteta que escolhesse para desenhar sua casa quisesse construir uma mansão, dados as dimensões do terreno, enquanto ele queria algo mais simples: “casa com sala grande, um quarto pra cada filha e uma cozinha”. A resposta de Ângelo deve te-lo impressionado pois ele me redisse suas palavras: “meu trabalho é fazer casas, se for de 50 ou 500 m é a mesma coisa”.
Projetar uma casa de 50m ou de 500m é realmente a mesma coisa?
É claro que algo muda quando se muda a escala, mas há algo também que permanece, sendo esse algo aquilo que é da essência do ofício. Depois de tudo o que relatei acima penso que o ponto central dessa questão (que vejo no escritório) é a manutenção constante de um estado de alerta. Não se deixar seduzir jamais pelo senso comum em relação ao ofício que se exerce. Tanto num projeto pequeno de uma casa, quanto num edifício de 30 andares de uso misto, há sempre forças do ordinário exercendo uma pressão constante no direcionamento do projeto. Se o objetivo do desenho é informar especificações da forma mais clara possível, toma-se o cuidado em nunca informar essas especificações de forma automática.
Numa casa o engenheiro reluta em fazer as coisas de um jeito que nunca fez, num edifício será o fornecedor de revestimento que tentará, a cada reunião, submeter a solução rápida e corrente.
Cada escala apresenta isso de jeitos diferentes, em diferentes situações.
Acredito que o que há em comum nas diferentes escalas de projeto é a atitude, a maneira do enfrentamento das questões e demandas que aparecem. Há uma posição deliberada em não se deixar seduzir pelo senso comum, ao mesmo tempo em que se procura dar voz e vazão à uma possibilidade de subjetividade que se contraponha às condições da existência ordinária (com o perdão da cambalhota conceitual).
E então?
Se eu tivesse visitado todas as obras do escritório talvez eu me arriscasse ensaiar sobre a arquitetura do SPBR, procurado pontos em comum, apontado questões, talvez traçado um histórico. Como esse não é o caso, me cabe como possível relatar apenas o que vivenciei. Assim, para escrever este texto apenas coloquei minha memória em movimento.
Acredito que há mesmo um algo constante que atravessa a arquitetura desses projetos e edifícios. É a forma como ela é pensada e produzida.